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Eucaristia, mídias e medos. Os riscos da infidelidade à teologia eucarística em tempos de pandemia

15 de abril de 2020   .   
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“Sobretudo, temo que a emergência de soluções pastorais por conta da pandemia possa nos desviar da mais genuína teologia litúrgica.” escreve Pe. Vanildo de Paiva[1].

Eis o artigo.

Não sou teólogo por profissão, nem liturgista nem catequeta. Sou psicólogo e um sacerdote que ama a Igreja e, por consequência, ama suas dimensões mais significativas: a liturgia e a catequese. Por isso mesmo, me sinto na obrigação e no direito de refletir alguns aspectos controversos que vão surgindo nas práticas de nossas comunidades eclesiais, nesses tempos de pandemia do coronavírus. Essa reflexão, portanto, não tem pretensão de ensinamento oficial sobre a teologia eucarística, mas apenas de provocação a quem queira ir além da onda de “customização” da celebração eucarística e da distribuição da comunhão eucarística aos fiéis. Questões como a midiatização dos ritos, os “passeios” com o Santíssimo pelas ruas de maneira espetacular, a chamada “comunhão espiritual”, a adoração ao Santíssimo à distância e a distribuição da Eucaristia via sistema drive-thru são algumas dessas questões candentes do momento. É possível até que a paixão pelo tema possa, em algum aspecto, comprometer a objetividade do texto. Portanto, desejo considerá-lo apenas como uma opinião.

Dizia um antigo slogan que “texto fora do contexto é pretexto para a heresia”. Então, vamos ao contexto. Nunca imaginávamos que poderíamos ser surpreendidos por uma pandemia de vulto tão abrangente e limitante como essa da COVID-19. Quando a Igreja começou a pensar em cancelar os cultos presenciais e pedir aos fiéis que rezassem em casa, pareceu-nos um despropósito. A sensação era a de arrancar uma plantinha de seu habitat essencial. Ainda que já estivéssemos acostumados às transmissões de missas e de eventos religiosos pela televisão e redes sociais, simplesmente pensar na possibilidade de não formar assembleias orantes nos templos para missas, casamentos e demais celebrações era algo bastante estranho. Isso tudo sem falar no risco – agora realidade – de passar uma Semana Santa sem os sinos e incensos nas igrejas, sem os santos na rua, sem as multidões orantes, piedosamente acompanhando as cerimônias belíssimas da Semana Maior! No entanto, foi necessário. A decisão de suspender temporariamente as celebrações presenciais foi sensata e profundamente comprometida com a causa da defesa da vida e do amor ao próximo. Se há quem não aceite isso, que revisite os evangelhos e contemple a defesa que Jesus faz da misericórdia e da prática do amor como condições sine qua non à legitimidade do culto: “misericórdia que eu quero, e não sacrifícios!” (Mt 9,13).

Mas essa era apenas a primeira parte do problema. Como atingir os fiéis e alimentá-los espiritualmente enquanto durar a pandemia? O próprio papa Francisco convocou os sacerdotes a deixarem-se guiar pelo Espírito Santo para que não lhes faltasse discernimento e não deixassem sozinho o povo de Deus, mas que a Igreja pudesse ser o suficientemente zelosa e se fazer presente na vida de cada cristão. A partir de então, pululam iniciativas bem intencionadas na sua essência, quero crer, mas algumas duvidosas de legitimidade na sua forma. Seriam estas iniciativas inspiradas pelo Espírito? Por qual espírito, é o que nos resta saber. Se, por um lado, há iniciativas, a meu ver, bastante sensatas e fiéis à nossa teologia litúrgica, por outro, há situações que, inevitavelmente, destoam ou até contrariam o que a Igreja ensina a respeito da liturgia, especialmente a advinda da Sacrosanctum Concilium, Constituição do Concílio Vaticano II que deve perpassar a nossa prática orante e celebrativa hoje. Isto sem contar a perceptível disputa de egos inflados de alguns ministros ordenados e fiéis leigos que, da noite para o dia, acharam o seu lugar de iludidos popstars. Nesse sentido, a pandemia, com a consequente “imediatez midiática”[2], só possibilitou que viesse à tona o que há tempo estava submerso: uma fraca teologia de alguns membros da Igreja, somada, não raras vezes, a significativos transtornos narcisistas, combinação perfeita para a já conhecida expressão “criatividade selvagem”[3], que promove a epifania da pessoa em detrimento da epifania do próprio mistério de Cristo! E, em havendo palco, plateia e câmeras, artistas não faltarão.

Um dos caminhos encontrados para prover os fiéis do alimento pastoral e nutri-los de espiritualidade está sendo o uso da mídia em larga escala. Digo, de início, que não a exorcizo. Pelo contrário, também a uso e tenho consciência do bem e do quanto ela pode favorecer a evangelização. O que não significa, no entanto, que os fins justifiquem todas as estratégias que estão sendo criadas, mesmo com a boa intenção da Igreja de estar perto dos fiéis, especialmente, nesse momento, em que predominam experiências de angústia e necessidade de intensificada oração. A própria convocação do papa para a oração em união com ele e com o mundo inteiro, na bênção Urbi et Orbi, dada na Praça de São Pedro, no dia 27 de março desse ano, é prova de que a Igreja está preocupada em oferecer a seus filhos oportunidades de se sentirem aconchegados no colo de Deus em hora de crises e sofrimentos.

Fato é que, a cada dia, nos surpreendemos com inúmeras iniciativas, parte delas espetaculares, – algumas até circenses, diga-se de passagem- que visam a compensar as lacunas deixadas pela supressão das celebrações e liturgias presenciais. E aqui surgem alguns questionamentos: até que ponto os que assistem as programações transmitidas pela televisão, Facebook, Youtube e outras mídias dão conta da diferença entre participar do rito litúrgico e fazer uso de um palco iconicamente inflacionado (a tela) para fazer sua oração pessoal ou familiar? Se a defasagem do espírito de comunidade já era um dos maiores desafios que a Igreja vinha enfrentando, nessa segunda década do século XXI, o incentivo à oração por meio das mídias não levará ao extremo da des-localização da experiência ritual, como questiona Massimo Faggioli, em um importante artigo publicado recentemente[4], promovendo a autorreferencialidade espiritual da subjetividade? Existe o perigo de uma satisfação reducionista com a oração à distância, a ponto de cairmos em um esvaziamento dos ritos cristãos, que só são possíveis pela mediação concreta do sinal palpável que, por sua vez, exige a presença e a globalidade da pessoa humana (corpo-mente-espírito)? Os que desejam a comunhão eucarística, que sentem “saudades de comungar”, até onde têm consciência da íntima e necessária ligação desta com a comunidade cristã, que é parte essencial do rito da missa? Que valor está se dando à comunhão com a Palavra de Deus e à oração familiar, nesse tempo de confinamento social? Ou será que o Espírito Santo estará, mais uma vez, preparando para nós uma bela surpresa de aggiornamento (renovação), para que voltemos às fontes, ou quem sabe, à Fonte de nossa fé, isto é, Cristo e sua proposta de seguimento? O tempo e nossa capacidade de ler seus sinais dirão!

Todo rito cristão é realidade histórica, nela está enraizado e dela se nutre. Se olharmos brevemente a liturgia da Páscoa hebraica, saltará aos nossos olhos e ouvidos a figura do filho mais jovem convocando o pai a rememorar o evento fundante daquele rito anual: “Que significa este rito?” (Ex 12,26). E o pai, solene e ritualmente, com palavras, gestos e alimentos, conduz a família a narrar a saída do Egito, a travessia do mar Vermelho e do deserto, a entrada na terra da promessa etc. “Recordando o significado do rito pascal, o pai preserva o rito do constante perigo de perder a historicidade (sair da história). Esse relato impede que a liturgia se torne magia” (Boselli, p. 31). Do mesmo modo, Jesus, ao instituir a Eucaristia, o fez em um contexto imbuído da mística e dos elementos da Páscoa hebraica. Reuniu os amigos (sua família), mandou que preparassem a sala, a mesa e a comida (cf. Lc 22,7ss), sentou-se com eles e comeu o pão, as ervas amargas, o cordeiro, bebeu do vinho etc. Com eles entoou os salmos e orações da tradição ritual, enriquecendo-a e transformando-a. Doravante, quando comessem a Páscoa, não precisariam mais do cordeiro, porque ele se ofereceu em sacrifício como o novo Cordeiro, da nova e definitiva aliança (cf. Jo,29). Comeriam do pão e beberiam do vinho que, a partir de então, seriam realmente o seu corpo e o seu sangue. E “desde então a Igreja nunca deixou de se reunir para celebrar o mistério pascal” (SC 6). A Eucaristia, portanto, nasceu como ceia, banquete fraterno, reunião de comensais que antecipou, em mistério, o sacrifício de Jesus no calvário, bem como a sua ressurreição. Posteriormente, tanto em sinal de reverência quanto de defesa de seu caráter divino, ela passou a receber a adoração dos fiéis, dimensão que lhe foi devidamente agregada. Ao longo de dois mil anos de cristianismo, muito já se escreveu e se debateu a respeito dessa multiforme compreensão da Eucaristia.

O que pretendo, com essa rápida digressão que fiz, é trazer a questão da comunidade como aquela que “faz” a Eucaristia e por ela é constituída, em uma maravilhosa relação dialética. Talvez se entendam, aqui, a surpresa e o espanto ao mesmo tempo de muitos que nunca ouviram falar de “missa sem povo” e perguntam pelo seu significado e legitimidade, outro aspecto interessante a ser analisado. Mas, sendo fiel ao filão reflexivo que nos trouxe até aqui, pergunto: como pensar a realização da celebração eucarística sem a comunidade presente, sendo essa a “primeira matéria”[5], que antecede o pão e o vinho, para que haja Eucaristia? O padre representaria a comunidade, ao mesmo tempo em que age na pessoa de Cristo? É de praxe, em muitas residências, que as pessoas ouçam a missa pelo rádio ou a assistam pela televisão, sobretudo aquelas mais idosas e impossibilitadas de sair de casa. Não tenho dúvida alguma de que elas se beneficiam desses momentos de oração e, de algum modo, alimentam a sua fé. Mas não posso me esquivar da pergunta: as missas transmitidas pelas mídias equivalem à missa participada presencialmente? Obviamente não. Têm valor enquanto uma forma a mais de oração e escuta da Palavra de Deus e da Igreja, mas, mesmo que assistidas com piedade e devoção, para o fiel não é celebração eucarística. É uma maneira de acompanhar, à distância, a vida da comunidade, mas a unidade de fé que se cria é diferente daquela criada quando ele está presente na assembleia litúrgica.

E a chamada “comunhão espiritual”, o que pensar? É possível? Sim e não, poderíamos dizer. Depende muito do que a pessoa entende por comunhão. Se ela entende comunhão como a união espiritual e mística com Jesus, na oração e na fé, é possível, em qualquer momento de oração, e não apenas quando está diante da imagem da Eucaristia projetada pela televisão, por exemplo. Mas, se a ideia de comunhão for a participação nas espécies eucarísticas, similar àquela dos que comem presencialmente o Corpo do Senhor e bebem do seu Sangue, numa “mentalização” do ato de comungar, então isso não é possível à distância. E a adoração ao Santíssimo Sacramento, acompanhada pela televisão, tem valor? A pergunta é grande demais para poucas linhas. Pode ter valor como envolvimento subjetivo do fiel na oração e incremento de sua piedade eucarística, mas não é possível adorar uma matéria não presente de fato, mas só virtualmente. Mesmo se ajoelhando e tocando piedosamente na tela da televisão.

Mas, ainda temos que pensar na mais nova invenção customizada do rito eucarístico, a distribuição da sagrada Eucaristia a modo drive-thru, isto é, de forma rápida e prática, sem que o fiel precise descer do seu carro. Esse ineditismo tem surgido como maneira de driblar a necessidade que as pessoas sentem da comunhão eucarística e como recurso usado por alguns sacerdotes para não deixarem seu povo desassistido nesse momento de isolamento social. Também aqui reconheço a boa vontade e o zelo dos pastores em nutrir seu rebanho com o pão eucarístico. No entanto, surgem muitas questões complexas frente ao fenômeno: não seria essa iniciativa uma descaracterização da estrutura minimamente necessária para a celebração sacramental? Segundo o grande teólogo Pe. Taborda, a configuração do rito sacramental exige: 1. Um fato digno de ser celebrado, a saber, o mistério pascal; 2. A intercomunhão solidária, isto é, a unidade da assembleia na força do Espírito; 3. A expressão significativa: a Palavra, os gestos, os elementos simbólicos etc. Até nas situações excepcionais de partilha das espécies eucarísticas, como na visita e comunhão dos enfermos, o ritual prevê um breve rito, com a proclamação da Palavra de Deus. Na verdade, a Palavra dá sentido ao sinal. Sem a Palavra, o sinal se avizinha do amuleto ou do objeto mágico, isto é, do ilusório. Não estou subestimando a fé de um fiel que possivelmente entre nessa fila, nem mesmo dizendo que as hóstias não foram devidamente consagradas segundo a forma válida da Igreja, mas me perguntando: que sentido tem tudo isso perante a mais genuína tradição eucarística de nossa Igreja? Tal procedimento não reduziria a compreensão teológica da Eucaristia, que sempre compreendeu a íntima associação Palavra-Comunidade-Sinal? Em tempos em que a questão da mistagogia é reproposta como a grande chance de salvar a liturgia da evasão dos fiéis e da sua consequente adesão ao crescente tradicionalismo litúrgico, que se oferece como solução aos que buscam a experiência de Deus, tal prática, a da Eucaristia drive-thru, não reduziria a Eucaristia a um produto a mais a ser oferecido a quem queira? E a Constituição Sacrosanctum Concilium, que em tantos números quis garantir a participação consciente, piedosa e ativa da assembleia (cf. SC 11.48), é simplesmente ignorada em nome da situação emergencial? Ainda que tudo isso não tivesse importância, não fomos todos convidados a uma páscoa excepcional, para a valorização da oração em família e da união espiritual e caritativa a todos os que estão fazendo o seu calvário de dor com o Cristo, em busca da vida em plenitude? Não valeria, ainda, nesse contexto, a severa advertência de Apóstolo Paulo, quando questiona o povo de Corinto a respeito das divisões em nome da Eucaristia (cf. 1Cor 11, 18ss), já que uns comiam a ceia e outros ficavam privados dela?

Haveria muito ainda a escrever, mas o que já foi dito é mais do que suficiente para nos levar a sérias reflexões. Certamente, há também inconsistências nesse texto, e os teólogos poderão considerá-las com mais propriedade. Apenas quis partilhar meus receios frente ao cenário do momento. Sobretudo, temo que a emergência de soluções pastorais por conta da pandemia possa nos desviar da mais genuína teologia litúrgica. O recurso à virtualização dos ritos sem ponderação ameaça transformá-los em “ritos tecnológicos” sem qualquer corporeidade ou ética, intensificando ainda mais as tendências subjetivistas e espiritualistas que temos por aí. Se a mídia dispensa o tempo e o espaço que o rito cristão exige, facultando ao fiel assistir a celebração quando quer, o quanto de tempo quer e onde quer, sem precisar da comunidade e de todo o aparato que a cerimônia exige, assistiremos não apenas à desencarnação da liturgia, mas também do ser cristão. Mais importante ainda, isto vai na contramão daquele que se encarnou para nos amar mais de perto, deu-nos sua carne como verdadeira comida e seu sangue como verdadeira bebida e pediu que nos reuníssemos para fazer memória da sua vida, morte e ressurreição até que ele volte.

Referência bibliográfica:

CARDITA, A. Sacrosanctum Concilium e a ritualidade litúrgica na cultura do nosso tempo. Teocomunicação Porto Alegre v. 44 n. 1 p. 28-54 jan.-abr. 2014.
BOSELLI, G. O sentido espiritual da Liturgia. Coleção Vida e Liturgia da Igreja, vol. 1. Brasília: CNBB, 2014.
TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa. São Paulo: Paulus.

Notas:

[1] vanildopaiva@hotmail.com

[2] Expressão do teólogo Ângelo Cardita in Sacrosanctum Concilium e a ritualidade litúrgica na cultura do nosso tempo. Teocomunicação. v. 44 n. 1. Porto Alegre- RS.

[3] Expressão cunhada por Dom Armando Bucciol, bispo que foi referencial da dimensão litúrgica da CNBB recentemente.

[4] Liturgias virtuais correm o risco de “des-localização”. Artigo de Massimo Faggioli

[5] Sem presbítero não, mas sem povo sim? Artigo de Simona Segoloni Ruta

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos/Adital.

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